“I miss the comfort in being sad!”, gritava Kurt Cobain em “Frances Farmer”, manifestando no âmago do In Utero sua psiquê tão inquieta e angustiada que parece estar com saudade do tempo em que o desconforto e a desolação não eram tão aflitivos, quando parecia existir a possibilidade de repousar na tristeza.
Esta busca por uma melancolia serena, por oposição ao sofrimento excessivo e potencialmente suicida, me vêm à mente quando penso na obra que o Wilco criou na aurora desta século: não é um pouco este paradoxal comfort in being sad que está lá marcando presença em obras-primas como Yankee Hotel Foxtrot, A Ghost Is Born e Sky Blue Sky?
Jeff Tweedy parece ter realizado alguma magia suprema de alquimia psíquica: através do prisma wilconiano, a melancolia possa ser vista como algo quase confortável, uma substância narcótica amena e agradável correndo nas veias, algo que acalma, anestesia e nos deixa poéticos e sublimes, sublimando as inescapáveis dores do viver através da palavra cantada e da experimentação sônica…
Sky Blue Sky fornece a oportunidade de ir mais a fundo nesta constelação afetiva. O Wilco vinha mudando de formação de disco a disco, Jeff Tweedy sendo o único fio condutor comum a tantos Wilcos que viveram através dos anos. Claro que a perda mais crucial para a banda foi a saída de Jay Bennett, que abandonou o barco após Summerteeth devido a desentendimentos sérios com Tweedy, muito bem retratados no excelente documentário de Sam Jones, “I Am Trying To Break Your Heart”.
Com a debandada de Bennett, ocorreu uma certa “ruptura” na carreira do Wilco: com o lançamento de Yankee Hotel Foxtrot (2001), consumou-se a transformação de uma banda bastante palatável e “classicista”, que vinha construindo um som que flertava tanto com o power-pop de Big Star e Replacements quanto com o neo-folk que honra a tradição de Guthrie e Dylan.
Agora, o Wilco havia se transmutado num grupo que os críticos, não sem razão, gostavam de chamar de “experimental” e “vanguardista”: Yankee Hotel Foxtrot soava como um OVNI no indie, um álbum sui generis, um novo ponto-de-virada na história do rock alternativo, talvez o mais importante “divisor de águas” desde a eclosão, em 1997, de OK Computer.
Sem abandonar o experimentalismo e uma certa sedução pela vanguarda, patente com a inclusão das guitarras jazzísticas de Nels Cline, o Wilco reconectou-se com seu lado mais ensolarado e sedutor no disco do céu azul, onde aliás não faltam neblinas e melancolias, para efeito de contraste com os céus desanuviados que também ressoam por este belíssimo álbum, de um lirismo altamente concentrado.
Sky Blue Sky, ao contrário de aprofundar as tendências experimentais do álbum anterior, A Ghost Is Born, parece uma tentativa de retomar um pouco da simplicidade e espontaneidade que haviam sido deixadas um pouco de lado. O disco anterior, obra-de-arte instigante mas de digestão difícil, continha certos experimentos demasiado radicais para ouvidos não treinados como os 10 minutos de kraut rock + poesia dadaísta de “Spiders Kidsmoke” ou as guitarrices atonais que dominavam grande parte de “At Least That’s What You Said”.
Já Sky Blue Sky me parece o disco mais palatável do Wilco desde Summerteeth: disco duma musicalidade fácil e fluida, de uma banda que parece atingir a genialidade sem precisar fazer muito esforço, deixando para trás as sonoridades um tanto mais arrastadas e esquizóides que imperavam em certas músicas do Yankee e do Ghost. Fazia tempo que o Wilco não fazia algo que dava tanto a sensação de estar à vontade no mundo, sendo quem se é, sem grilos, sem neuras e sem excessivos melodramas.
Fazia tempo que Tweedy não parecia tão de bem com a vida e com sua banda (à época, declarou em entrevistas que considera esta, a atual, a melhor das formações do Wilco). Agora que seu estado de saúde parece ter se estabilizado e o cara não parece mais estar sendo torturado por enxaquecas duríssimas, o Wilco se beneficiou enormemente e cujo cantautor-líder pôde encarnar, como diz os Byrds, o aparente paradoxo de ser younger than yesterday – eis uma banda que soa muito mais jovem do que soava no Yankee Hotel Foxtrot e no A Ghost Is Born, que continham certas músicas que vinham impregnadas de cansaço, da exaustão e da desistência comunicacional.
É só lembrar que a voz de Tweedy ao declamar os versos de “I Am Trying To Break Your Heart” pareciam algo saído das cordas vocais de algum doente soterrado debaixo de uma apatia fissurada em anestésicos. Ou lembrar do quanto os lamentos arrastados de “Radio Cure” demonstravam muito, muito cansaço (“cheer up, honey I hope you can / there’s something wrong with me”).
O trabalho de guitarras em Sky Blue Sky, que está entre as coisas mais lindas que se fez na música pop nessa década, parece a continuação natural do que vigorava no A Ghost Is Born: um certo sabor de Sonic Youth está presente, e com isso se misturam certos arroubos e transas entre duas guitas que lembram muito o Television fase-Marquee Moon (especialmente no finzinho de “Impossible Germany”) e as jams do Neil Young com o Crazy Horse.
Mas o Wilco continua sendo uma banda capaz de ser simplesmente rock and roll: no refrão de “Hate It Here”, o riffão vigoroso que soterra o ouvinte parece algo que Jimmy Page poderia compor para a abertura de algum rockão do Led Zeppelin. Já o jeitão de “Walken” é puro Replacements, com Tweedy mais uma vez fazendo sua inimitável imitação do vocal de Paul Westerberg.
Jeff Tweedy nunca escondeu de ninguém o quanto estudou e foi influenciado por Bob Dylan e Neil Young, ambos fantasmas presentes aqui. A delicadeza das baladinhas folk “Sky Blue Sky”, “Patient With Me” e “Leave Me…” lembram a sutileza e a meiguice dos discos acústicos de Neil Young, especialmente o Harvest e o Harvest Moon. Já o tempero caipira no refrão de “What Light” é o mais perto que Tweedy já chegou de emular o Bob Dylan da fase Nashville Skyline.
Já “Had It Here” um poderoso blues-rock, um dos maiores hits potenciais que o Wilco compôs nessa década de 2000, é uma alegre fábula bem-humorada sobre saudade e desamparo. À primeira vista pode até parecer uma historinha um tanto machista de um cara que, abandonado pela esposa ou namorada, não consegue se virar com as tarefas domésticas mais banais – como se ele só sentisse falta dos serviços de empregadinha da amada… Mas a é música mais profunda que isso, apesar da aparência de trivialidade.
Quando o eu-lírico descreve0se a zanzar pela casa vazia, limpando todos os dormitórios, usando a máquina de lavar roupas, deixando a louça toda a brilhar, faz tudo isso só para descobrir que de nada adianta ter uma casa brilhando de limpa quando a amada está distante – “keeping things clean doesn’t change anything”.
É a renovalção da velha fábula do homem que pode ter uma mansão arrumada, gozar de privilégio imperial, com os talheres de ouro brilhando sobre a mesa (que não compartilha com ninguém), e o casão cheio de eletrodomésticos hi-tech, mas que odeia mortalmente o lugar onde está (e a vida que vive) por não estar junto de sua amada, pela ausência de amor em sua vida. “I hate it here when you’re gone…”. Uma atualização sagaz, de perspicácia poético-narrativa notável, de uma narrativa e de uma estrutura de afetos que Bill Withers plasmou em sua canção quase perfeita, “Ain’t No Sunshine” (When She’s Gone).
A tentativa de exorcizar a morte ainda permanece. No disco passado, Tweedy contava causos sobre gente cujo objetivo na vida era se tornar um eco (“Hummingbird”); dizia que parir fantasmas (a ghost is born…) através da arte era um modo de trapacear contra o túmulo; descrevia com triste ironia a crença de que tudo que tinha sido adquirido em vida viveria após a morte (o que não passa de “Wishful Thinking”)… Suas preocupações “espirituais” não mudaram tanto de um disco para o outro.
A música mais explícita sobre a mortalidade é a que fecha o álbum, “On and On”, onde Tweedy faz promessas de eternidade à amada… Você pode até imaginar a angústia invadindo o coração dela ao olhar nos olhos da morte, enquanto ele suplica que ela contenha o pranto (“Please don’t cry, we’re designed to die...”) e rascunha um poético consolo: “On and on and on we’ll be together, yeah… On and on and on we’ll stay together , yeah… Till we disappear together in a dream…”
Se ele acredita ou não nesse consolo é o que menos importa; a beleza da música está nesse mantra que ele sussurra aos ouvidos da amada, de maneira McCartneyana, com o charme de um lullayb, como uma mãe cantando para o filho uma canção de ninar que garante que os monstros não existem e que tudo vai ficar bem – mesmo que seja mentira. Me pergunto o que Jeff diria se fosse perguntando se acredita mesmo num amor que sobreviva à morte, como parece sugerir os versos de “On and On”, e gosto de imaginar que ele diria: “não sei, mas era o que era preciso cantar para ajudar a curar a ferida…”
Já “Either Way” é uma das músicas mais cheias de ternura que eu já ouvi, fotografando uma alma num momento de indecisão, sem saber se ainda é amado ou não, nem se no futuro será ou não, mas se predispondo a ser compreensivo, para bem ou para o mal, num amor fati que deseja acolher qualquer das alternativas que vier, quaisquer dos caminhos que for obrigado a trilhar. É uma doce mensagem que ele manda: me ame ou não, vou tentar entender – e talvez (mas só talvez…) isso tudo tenha algum sentido no esquema maior das coisas, como peça no quebra-cabeça que Bright Eyes se refere a em “The Big Picture”. Aconteça o que acontecer, amor ou não, amor ou solidão, ele vai estar em paz.
A doçura pacífica de “Either Way” é uma espécie de mudança de clima e de temática para Tweedy, já que a violência entre os amados sempre esteve presente como tema em várias canções do Wilco, e isso faz tempo. Só lembrar de “Via Chicago”, música do Summerteeth (1999), em que Jeff Tweedy descreve, através duma sangrenta narrativa folk, um “causo” de assassinato parecido com aquele que Neil Young narra em sua clássica “Down By The River” (“down by the river i shot my baby”…).
Os primeiros versos da longa canção já vem afundados em sangue e hostilidade: “I dreamed about killing you again last night – and it felt allright with me / Sitting on the banks of Embarcadero skies – I sat and watched you bleed”. Nenhuma outra música do Wilco chegou a esse nível de ultraviolência, descrevendo o cara sonhando em matar seu “bebê” e depois assisti-la a sangrar até a morte. Mas há algo parecido no “estou tentando quebrar o seu coração”, título e refrão da primeira música de Yankee Hotel Foxtrot, e no “você achou uma gracinha vir beijar meu olho roxo, apesar de eu o ter ganho de você”, em “At Least That’s What You Said”.
Esta última, aliás, apesar da placidez tranquila em que se desenrolam seus primeiros minutos, é uma melancólica canção que fotografa a dificuldade de comunicação e o afastamento gradual de um casal em crise. É como se o eu lírico estivesse perdido, sem saber ao certo se o que a amada diz é da boca pra fora ou realmente vem das profundezas de seu ser. Dá até pra imaginar os dois dentro de um quarto, brigando amargamente, e ela dizendo: “Leave me alone!” Mas aí o eu lírico se pergunta: “Talvez se eu for embora, você vai querer que eu volte pra casa…”
Fica aquela indecisão de descobrir se há algo por detrás do falado, se algo se omite, se esconde e se mascara – e o relacionamento parece estar caindo aos pedaços justamente pela falta de sinceridade entre os dois, por essa eterna suspeita do “pelo menos foi o que você falou”, sem que se saiba o que de verdade se sentia, por trás do falado…
Em Sky Blue Sky, Tweedy parece mais pacífico, mais doce, mais iluminado, apesar de ainda ter a alma polvilhada por farelos de tristeza (que, no fundo, incomodam bem pouco…). Ele mostra-se tentando ficar feliz só pelo fato de estar vivo (“oh, I didn’t die, I should be satisfied / I survived… That’s good enough for now…”) e evocando esperanças das mais simples e singelas para adoçar a própria alma desconsolada (“maybe the sun will shine today, the clouds roll away… maybe i won’t feel so afraid…”).
Na linda “You Are My Face”, ele confessa, em meio a versos enigmáticos, o quanto está perdido (“i have no idea how this happens / all my maps have been overthrown…”) e nem sabe mais quem é (“when everybody’s feeling all alone can’t tell you who I am…”). Mas o maravilhoso no Wilco é que nada disso deságua em desespero estrangulante ou em paralisia choramingante. A vida é afirmada, abraçada, beijada, amada e aceita com tudo o que ela contêm dentro. A confusão, a melancolia, o desconsolo, são todos abraçados com aceitação, quase ternura, como se fossem velhos amigos que vêm com o sabor tranquilizante da familiaridade…
Com esse belíssimo disco, o Wilco se consolidava como a melhor banda americana da atualidade, de longe e sem rivais no retrovisor. E Jeff Tweedy, ao mesmo tempo que prosseguia sendo um cantor dos mais adoráveis, ia adentrando um ambiente lírico totalmente próprio. Não há banda que soe nem remotamente parecida com o Wilco, nem musical nem poeticamente, sinal da originalidade dessa banda que deixou sua marca indelével sobre o mapa do rock alternativo deste século.
DOWNLOAD DO ÁLBUM COMPLETO (135MB, mp3, 17 faixas, 1h11min, 86MB): https://www.mediafire.com/file/r4gp0y5lkfrbpk5/Wilco+-+Sky+Blue+Sky+(2007)+[MP3].zip/file
Disponibilizamos aqui o Sky Blue Sky versão de luxo, que além das 12 faixas originais, vem com o EP de brinde – este contêm três músicas inéditas (“The Thanks I Get”, “Let’s Not Get Carried Away” e “One True Vine”) além de versões ao vivo de “Impossible Germany” e “Hate It Here”.
MAGNET – WILCO: HEROES AND VILLAINS (2002). In the eyes of the record label there was a failure; and in the eyes of Wilco there was an album growing heavy for the vintage. How Jeff Tweedy and Co. fought against the man and amongst themselves for the fruits of Yankee Hotel Foxtrot. By Jonathan Valania.
“YHF is the smoking gun in the case for Wilco being the new Great American Band—a torch-passing tradition that stretches from prime R.E.M. to the Band to Bob Dylan, who got it from Woody Guthrie, who picked it up from Carl Sandburg, who had it passed to him by Walt Whitman.”
Publicado em: 24/10/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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